sábado, 29 de abril de 2023

O Caminho da Morte João Rodrigues

O COMINHO DA MORTE

 

JOÃO RODRIGUES

 

Capítulo um

            Na madrugada fria e cinzenta para os olhos de Nilvaldo, fazia o resto do seu ser se esconder na fronteira do nada, pois às margens da BR 381 de volta para sua terra natal, pernoitava num abrigo da estrada com seus companheiros mendigos que também vinham trazendo consigo a expressão de derrota e traição, de um lugar que fora antes a solução e a possível oportunidade de ser alguém na vida.

            - Nivaldo, porque o seu nome é Nivaldo?

            - Desde que entendi por gente Eduardo! Chamam-me assim. Porém, ninguém nunca me disse o motivo.

            - Você também não deve ter perguntado!

            - Nem sei Lúcio. E que diferença faz Eduardo. Seu nome, Eduardo. Grande coisa...

            - Olha o respeito cara. Quem me deu esse nome foi o meu avô.

            - Como se chamava o velho idiota que lhe deu esse nome?

            - Velho idiota não Lúcio. Ele era um velho e tanto. Morreu bebendo. Porém era honrado. Não como nós, que nos transformamos em mendigos, que não tivemos a competência e coragem de lutarmos por nossos direitos. Com isso deixamos os Coronéis nos fazer a maior das suas maldades e somos hoje essas merdas, essas merdas que somos.

            - Contudo, quando morrermos seremos salvos!

            - Rá, rá rá... Salvos Nivaldo! Salvos do quê.

Do que acha que seremos salvos? A vida cara! É só esta. É uma só. Deus disse que quando o homem morre, com ele morre também os seus  pensamentos.

            - Ele falou dos pensamentos cara, mas não falou da alma!  Exclamou Eduardo.

            - Alma cara! Acha que mendigo tem alma? -  relatou Lúcio meio triste se é que mendigo tem direito a alegria.

            Enquanto aquelas pobres almas falavam de nomes, almas, vidas, avós, e atirados no abrigo da estrada, sem comida, sem agasalho, via-se na estrada que deva passagem à grandes carretas que vinham iluminando as suas margens com grandes bolas de luz, os seus pneus faziam dueto com potentes motores que pareciam quebrar a barreira do silêncio nos pés das serras paulistas... 

            - Ali vai mais um carregamento de alimento para os Coronéis e os seus capangas.

            - Eu gostaria de ser um capanga de um Coronel, Nivaldo. Mesmo que fosse o mais pobre dos Coronéis da terra. Mesmo assim eu gostaria de ser.

            - Não sei por que Lúcio. Sei que você foi prejudicado por Coronéis, Pois nós somos o fruto da maldita árvore da violência que os Coronéis plantaram na terra brasileira. Coronéis desgraçados...

            - Eu também  acho -  concordou  Eduardo  tentando  consertar  o  que  sobrou  da  sua camisa suja de pó de asfalto e cozida pela geada e o calor do sol durante o dia de fome e dor no caminho da morte.

            - Vida desgraçada. Vejo a fome me consumir. Hoje não encontramos uma viva alma sequer que nos desse algo para comer. E na minha mente faminta eu vejo a minha mãe com aquela expressão de bondade.

E até mesmo na pobreza ela colocava os pratos na mesa e trazia aquelas grandes sopeiras de esmalte. Sei que eram de muitas cores, rosa, azul, Amarela, vermelha...

            E elas estavam cheias de alimento. Eu via o meu pai com aquele jeito de maioral que ele tinha.

            Assentava-se a mesa e servia primeiro um pouco de feijão. Depois misturava com farinha e pimenta. Tirava umas boas garfadas com aquela boca de paladar. Nem mesmo mastigava. Ele engolia, e aquele enorme bigode mexia. 

            - Se tivesse aqui em minha frente aquele feijão que o Lúcio acabou de falar, eu seria o homem mais feliz do mundo. Ou melhor, o mendigo mais feliz do mundo. E depois que eu comesse aquele feijão, ia me deitar ao lado da minha amada. E ali, faríamos amor.

            - Logo depois da comida Eduardo! Você poderia morrer. Nunca ouviu falar.

                - Tudo bem Lúcio. Se eu morresse, morreria feliz. Seria melhor do que esta morte desgraçada que vem acabando comigo aos poucos nesta estrada maldita. É Lúcio! Eu morreria feliz.

            Os três mendigos falavam, falavam, esperando o que não sabia o que de repente vinha o que não sabia o que. Porém naquele instante parou um carro em frente ao abrigo e pessoas desceram gritando:

            - Policia, policia...

            E aqueles restos de três humanos se levantaram aos pontapés...

            - Eu não fiz nada senhor, eu não fiz nada - gritou Lúcio.

            - Eu não tenho culpa de nada, não tenho culpa - relutou Nivaldo.

             - Me deixe em paz seus desgraçados. Será que não basta ter me tirado a minha vida. Fizeram-Me um mendigo! - exclamava aflito Eduardo.

            E dentre os policiais que falavam:

            - Você está falando muito Zequinha. Ponha essa imundície no xadrez.

            - Sim senhor Delegado.

            E em poucos segundos aquele lugar ficou deserto. E a imagem de dor se apoderou dali. E aqueles dois mendigos nada puderam fazer para proteger o amigo.

            - Desgraçados! Seus desgraçados. Eu vou matar vocês!

            - Matar como Nivaldo? Não temos condições nem de sobrevivência. Como vamos matar a polícia... Logo a polícia Nivaldo!

            - Vamos Lúcio. Vamos matar... Vamos salvar o nosso amigo.

            - Somos mendigos, Nivaldo.

            O dia vinha amanhecendo. Os olhos de Nivaldo olhavam os raios de sol. Os seus lábios rachados recebiam com naturalidade as últimas brisas da manhã.

            - Vamos Lúcio!

            - Vamos pra onde Nivaldo?

            - Vamos voltar e ver aonde a polícia deixou Eduardo.

            - Se quiser vai só, Nivaldo. Eu vou continuar a minha viagem. Quem sabe quando eu chegar à minha terra encontrarei lá algum parente que possa me dar uma ajuda! Assim eu serei um homem feliz!

            - Feliz Lúcio! Ficou louco? Que tipo de felicidade você ainda espera da vida cara! O mundo está perdido cara. Os Coronéis acabaram com o mundo. Não existe mais essa coisa que você falou! Felicidade. Não, não existe mais...

            - Quem sabe Nivaldo! Eu vou encontrar com a felicidade. Deus mandou que fizéssemos a nossa parte.

            E assim, só assim estamos prontos para que Ele nos ajude.

            - E você vai ser feliz! Sabendo que um dia quando era mendigo, não quis ajudar um amigo mendigo. Não acredito que isso é felicidade. Você vai se esconder atrás de uma cortina de hipocrisia e achando que está feliz. Isso é um engano cara... Isso não é felicidade.

            - Sabe Nivaldo! Eu estaria ajudando sim, se não fosse lá. Quem sabe ele tenha mesmo a sorte de ser preso!

            - Ficou louco Lúcio. E ser ele for mesmo preso. Você gostaria de ser preso?    

            - Gostaria. Não ser um preso comum. Mas ser um preso perigoso.

            Assim eu teria uma cela só para mim. Sei que não iria me faltar  nada.  Eu teria do bom e do melhor. Roupas, remédio, comida, banho, e além de um sindicato a meu serviço. Seria bem melhor do que ser mendigo. É duro cara. Não temos nem mesmo um sindicato para nos defender.

            - E o que é essa coisa aí de sindicato?

            - Não sabe que o sindicato cuida da sua classe!

             - Isso seria a coisa mais triste da terra. Um sindicato de mendigos. Seria uma coisa horrível.

            - Não sei o porquê do susto Nivaldo! Não tem o sindicato dos médicos, dos metalúrgicos, dos fazendeiros, das domésticas, dos delegados, dos mineiros! Portando o que tem de diferente ter o sindicato dos mendigos!

            - Tudo bem Lúcio. Mas a idéia ainda assim soa estranho em minha mente.

            - Pois é Nivaldo. Já eu acho que muitos desses sindicatos por aí não passam de como se fossem de mendigos. Só que mendigos disfarçados atrás de uma classe. Observa uma empregada doméstica que rala na casa de uma madame por uma ninharia. Ela não passa de uma mendiga para mim.

            - É cara. Contudo é uma classe que é reconhecida por lei. E nós não. Nós nem mesmo existimos para eles.

            Enquanto aqueles restos de humanos falavam e andando, o sol começava a aquecer a estrada da morte. Lúcio conseguiu fazer o Nivaldo desistir da idéia de ir à procura de Eduardo. Assim seguiam estrada rumo a Belo Horizonte.

            - Veja Lúcio. Um posto de gasolina. Quem sabe ali encontraremos alguém  que nos dê um pouco de comida...

            - Deus ajuda que sim Nivaldo. Eu já não tolero mais esta fome maldita.

            E ali perto deles à beira da estrada existia alguém caído no chão.

            - Veja Nivaldo. Alguém morto? Será que já morreu mesmo?

            - Já cara! Está duro. Está morto Lúcio. Esse será o nosso caminho. O nosso fim.

            - É Nivaldo. Eu estou com medo. Eu tenho muito medo.

            - Lúcio! Se você for mesmo ajudado por um parente. E estiver numa boa um dia. Aposto que nem irá se lembrar de mim!

            - Bobeira Nivaldo. Eu, é claro que vou te ajudar. Apesar de que eu não poder lhe prometer nada. Mas logo que estiver numa boa, vou lhe dar a mão.

            - Você vai rir de mim. A me ver morto ao lado de uma estrada como esse cara aí.

            - Não teria essa coragem Nivaldo. Eu jamais riria de você...

            Enquanto os dois mendigos falavam de seus planos ali perto de homem morto, o carro da polícia chegou. Nivaldo procurou se esconder, e o pobre Lúcio acabou sendo preso. O mendigo Nivaldo ficou escondido no mato enquanto ouvia o amigo gritar nas mãos da policia.

            - Não tenho culpa de nada senhor. Eu sou inocente.

            O coração de mendigo Nivaldo sofria e se alegrava ao mesmo tempo. Pois era o sonho de Lúcio ser preso. No entanto o que ele queria mesmo era ser um preso famoso. Para ter uma cela só para ele. Não conseguiu. Porém, foi preso mesmo assim.

            - Agora que estou só vou viver uma vida diferente - relatou o mendigo Nivaldo andando estrada afora mendigando pelo destino que nem mesmo ele sabia qual.

            E assim a sua caminhada cruel seguia, ele procurava se proteger. Pois mesmo entre os miseráveis existem as guerras, pois nesse nosso planeta até mesmo os nossos irmãos são os nossos próprios inimigos. E lá pelos abrigos que pernoitava, encontrava escritas nas velhas e sujas paredes da estrada da morte.

   - Escreveram aqui! Deus! Oh! Senhor Deus! Agradeço o pedaço de pão que encontrei pelo chão. Senhor! Agradeço por ter matado a minha miserável fome.

            E noutro lugar Nivaldo leu em voz bem alta:

            - Fiz o que pude e não pude fazer para conseguir. Contudo sei que nada pude ter. Hoje sou um desgraçado Senhor. No entanto sei que o Senhor sabe o que faltou para que eu pudesse conseguir. Noto que o Senhor não fala com a gente. E principalmente com gente pequena...

            Eu não pude encontrar o que muitos disseram que encontraram, a tal da felicidade. Nem sei a cor que ela tem Senhor. Hoje estou morrendo. Na escuridão da fome, eu ouço carros e vejo vultos que passam pela estrada, até parece que é a morte que ronda o meu ser. Sinto que logo aliviará os meus pés rachados de peregrinar pelo solo, vejo as minhas mãos sujas se desfazendo em minha mente como o pó. A inveja que sempre tive por alguém agora se afoga no ar de desespero por não ter nome, valor. Por não ter ninguém. Eu não posso nem chorar. Pois não tem ninguém para ver as minhas lágrimas. Não posso pedir socorro. Devo remoer a minha dor, devo ranger os dentes. Devo guardar as minhas palavras, pois sei que ninguém me ouve.  Sinto que estou morrendo Senhor. Eu estou me entregando ao verme da morte. Já sinto os meus olhos escurecendo. Sinto que a minha alma se despede do meu corpo imundo. Que me arrasta pelo tempo sendo banhado pelo vento, no compasso da incerteza na pobreza, na desgraça...

            Nivaldo lia e se sentia quase como quem tivera escrito aquilo ali. Na parede daquela maldita estrada. A estrada da morte. Porém ainda estava forte e resistente. De modo que os dias passaram e Nivaldo não conseguia guardar a dor e a saudade dos seus companheiros. De maneira que falou:

            - Gostaria de me encontrar com vocês. Não posso deixá-los sozinhos. Não sou um covarde. Quem sabe um dia eu irei precisar deles.

            E Nivaldo resolveu se deitar no eixo de uma carreta que estava indo para São Paulo.

            E quando chegou às imediações de onde Eduardo tinha sido preso ele fez com que o motorista da carreta parasse...

            - O que será que está acontecendo! -  exclamava o motorista da carreta descendo para ver o que tinha acontecido. E por não encontrar nada, o motorista se foi e Nivaldo já tinha descido...

            - Obrigado pela carona amigo.

            E ali na margem da estrada. Da maldita estrada da morte. No trevo de uma cidade, num abrigo, Nivaldo encontrou Eduardo.

            - Eduardo! Sou cara, o mendigo Nivaldo. Eu voltei cara. 

            O pobre Eduardo estava numa profunda tristeza, no entanto, ao ver o mendigo Nivaldo. O abraçou chorando e disse:

            - Você Nivaldo, o mendigo Nivaldo, o meu amigo, você! Eu tenho um amigo.

            Como se fosse uma mãe, Nivaldo deixou que Eduardo chorasse em seu ombro e disse:

            - Você cara. Você é um cara legal. Voltei para tirar você da cadeia. Pois depois você e eu vamos ajudar o Lúcio. Ele também foi preso. A essas alturas deva estar sofrendo nas grades da prisão. Pagando por uma coisa que não fez.

            E Eduardo contava para Nivaldo enquanto seguiam estrada rumo a Belo Horizonte...

            - É Nivaldo, eu apanhei muito. A polícia me bateu como se eu fosse um animal qualquer. Não sei por que fizeram isso comigo. Não sei qual o motivo...

            - Deve  ter  sido  por  ordem  de  algum  Coronel maldito Eduardo. São eles que causam tanta dor nas pessoas. Eles são as desgraças na terra. Um dia vamos acabar com eles.  

            - Não tem jeito não Nivaldo. Nós já estamos chegando ao fim. Estamos morrendo aos poucos. Logo seremos pó. Tudo isso aí vai ficar debaixo do sol e em nossos lugares viram outros mendigos para ocupá-los.

            Distante do nosso mundo os dois humanos deslizavam-se pelo real vivendo fora da nossa realidade. O mundo da extrema divisa entre os seres que ainda dizem que somos todos iguais. Porém aqueles eram mendigos. Sabiam dos seus nomes, no entanto não tinham documentos. E nem precisavam esperar ninguém, pois não tinham a quem esperar.

            - Rá, rá, rá cara. Foi bom te ver de novo cara. Legal Nivaldo estou muito legal.

             - Eu sei cara.

             - O que vamos fazer para encontrarmos o Lúcio?

            - Não sei Eduardo, não sei... Contudo vamos procurar encontrar com ele. Pois só a morte é que vai nos separar.

            Nivaldo e Eduardo seguiam margeando a BR 381 sendo iluminados de vez em quando pelos faróis dos carros que passavam como se estivessem correndo em busca de alguma coisa muito especial. E como aqueles dois mendigos que também iam à busca das suas tarefas. Que seria encontrar o mendigo Lúcio.

            - Será que a polícia não matou o mendigo Lúcio, Nivaldo?

            - Deus permita que não Eduardo.

            - Quando eu me encontrar com Lúcio quero dar um grande abraço nele. Depois disso quero que nada mais nos separe.

            Era dia. A claridade dava permissão para Nivaldo ver as lindas fazendas de café que existiam a margem da BR 381. O caminho da morte. E lá eles viam peões que cuidavam das fazendas. No entanto, a fazenda valia mais do que qualquer um daqueles peões. Pois quando alguém se aproxima delas eram repreendidos por os ferozes cachorros e pistoleiros armados. Aquilo era uma coisa que o mendigo Nivaldo não concordava.

            - Vida desgraçada, uns têm tanto e outros nada têm. Põe até cachorro na gente.

            - Deus está vendo isso Nivaldo.

            - Que diferença faz Eduardo! Deus está vendo a gente sofrer. Só sofrimento, nada mais do que sofrimento. Grande coisa Ele está vendo! Grande coisa.

            - Por que Deus Nivaldo?

            - Sim Eduardo, Deus. Ele está vendo.

            - Para Deus tudo é possível Nivaldo! Ele poderá nos transformar em grandes cidadãos novamente.

            -  É tudo muito estranho na vida. Desde quando eu entendo por gente, vejo gente miserável.

            - Você está ficando louco varrido Nivaldo. Gente miserável! Não estou entendendo.

            - Gente miserável de tanta pobreza e gente miserável de tanta riqueza.

            -  Compreendo que tipo de miserável você está querendo se referir.

            Chegou  a  noite  e  o  céu  claro  com  o prateado da lua embelezava a estrada da morte que como uma festa ela estava sempre movimentada com tantos carros que passavam... Nivaldo e o seu amigo Eduardo seguiam os seus destinos e aqui e acolá encontravam com outros mendigos que  seguiam a estrada da morte.  Mas naquela noite, porém, tudo era diferente. O luar dava vida aos olhos de Nivaldo.  Que até cantava uma canção pela BR afora:

            - Olho para lua que vem -  Subindo o céu devagar -  Fazendo-me cantar  De saudades do meu bem - Vem lua  - Vem beijar o meu amor -  Vem lua - Vem lua  Acalmar a minha dor -  Eu sei que ela está tão longe  - Não pode me escutar -  Leva lua.  O meu pedido.  Pra ela me perdoar.  Sim, sim lua, sim.  Eu sei que ela está tão longe.  Não pode me escutar - Leva lua.  Meu pedido pra ela me perdoar.  Sim, sim lua.  Você tem pena de mim.  Sim, sim lua.  Você tem pena de mim.

            - Bonita música Nivaldo! Quem te ensinou?

            - Foi minha namorada que eu tive quando eu era gente.

            - Como se chamava?

            - Neuzinha! Era uma gordinha. Ela gostava de ficar comigo sempre nas noites de lua.

               - Então você teve um amor Nivaldo?

   - Vem me dizer que você também não teve!

   - Todos nós já tivemos um amor. Mesmo que não nos amasse de verdade. Mas já tivemos um amor.

   - E como se chamava o seu amor?

   - Fernanda. Era uma linda morena. A conheci quando ela ainda era pequena. Foi muito bonito o nosso amor.

   - Sabe Eduardo! O amor não tem nem mesmo forma de dizer se era bonito, nem mesmo a palavra bonito justifica o amor.

            - Você tem razão Nivaldo.

            - Apesar de sermos mendigos Eduardo, nos não somos burros. Pelo menos  ainda falamos de amor. Apesar da vida não mais nos permitir o amor e nem mesmo amar. É Eduardo, tantas coisas  que nós não podemos.

            E os dias se passaram. Até que inesperadamente alguém gritou. E o grito vinha de um capinzal que ficava nas margens do caminho da morte.

            - Este grito é do Lúcio.

            - Por que você acha Nivaldo?

            - É ele Eduardo, só que está gritando meio baixo.

            E quando os dois mendigos entraram dentro do capinzal...

             - Lúcio! É você cara. O que aconteceu cara?

            - Estou cego de um olho Nivaldo. Estou muito mal. Não me mataram Nivaldo. No entanto, estou cego do olho direito.

            Nivaldo meio triste ao ver o amigo cego relatou:

            - Polícia desgraçada. Este mundo é assim. Quando não há sorte que nos permite a vitória ainda vem a tal da polícia para nos tirar o que nos restou. Desgraçada. Polícia desgraçada...

            - Não fique assim Nivaldo, a polícia tem razão. Nós é que somos miseráveis e que merecemos sofrer, sofrer sem limites. Até a última instância da vida humana. Vamos Lúcio, Vamos seguir a nossa estrada.

            - Eu nem sinto vontade de seguir Eduardo. Vou me entregar à morte aqui mesmo. O dia que alguém me der comida eu como. Se não me derem nada, assim morrerei de fome. Eu não tenho outra escolha.

            - Que é isso cara! Você não queria ser um preso famoso. Ter uma cela só para você! - exclamou Nivaldo tentando reanimar o amigo.

            - Não quero ser mais esse preso que falei e nem tampouco famoso. Pois eu sinto a morte se aproximando de mim como se fosse uma chuva que vem de longe para regar uma terra seca que nela não nasce mais nada. E a chuva chega bem distante do rio e vê a sua água se perder na areia faminta.

            - Que é isso cara! Vamos lutar. Reaja cara! Vamos lutar contra os Coronéis. Os nossos corações ainda estão funcionando cara... Podemos amar de várias formas! O amor existe cara.

            - Vocês venceram amigos! Vamos seguir e ver se alguém nos dará o que comer - Afirmou Lúcio se sentindo convencido de quê o que tinha que fazer era continuar a vida. Continuar a viver a vida que tinha para viver.

            - Eu gostaria mesmo era de estar assentado numa  mesa  cheia  de    comida e assim eu seria um homem feliz -  relatou Eduardo.

            - Quem não gostaria! - exclamou Lúcio. 

            E os três mendigos chegaram num posto de gasolina onde ali um viajante mandou lhes dar comida.

            - Muito obrigado senhor!

            - Qual o senhor você está agradecendo Nivaldo?

            - O que nos deu a comida.

            - E quanto ao mestre não vai falar nada?

            - Não Eduardo. Eu nem confio mais nesse cara. Esse Deus de hipocrisia. Que faz da sua mais perfeita criação um mendigo. Ele não merece o meu respeito.

            - Se eu fosse você Nivaldo! Pensaria um pouco para tocar no nome de Deus.

            - Por quê Lúcio? Acha que eu falo só da boca para fora! Não, não Lúcio, não é.

            - Sim, isso mesmo. Lá dentro. Bem no fundo do seu coração deve estar dizendo ao contrário.

            - Você já me conhece cara. Sabe que sou homem de palavra. Não acredito Nele mesmo e pronto.

            - Ninguém está livre disso Nivaldo.

            - Não! Eu estou. Eu não acredito e fim de papo.

            Nivaldo na verdade parecia não ter mesmo crença em Deus. Também pudera...

            - Sabe Lúcio! Recordo do meu tempo de criança. A minha mãe me ensinou a rezar, e eu como um idiota ficava falando com o invisível esperando que o que eu pedia viesse de verdade em minhas mãos. Foram muitos dias de tristeza que quando perdi a esperança. Se eu quisesse tinha que trabalhar. E mesmo trabalhando nunca cheguei a lugar nenhum. Não! Não acredito.

            - Foi falta de fé Nivaldo.

            - Você acha que foi mesmo Eduardo? E você! Por que ficou nessa miséria?

            - Nem sei por que Nivaldo.

            Eduardo falou meio triste e ao mesmo tempo estava alegre, pois tinha acabado de matar a sua fome, pois até disse:

            - Olha Nivaldo! Vocês dois olhem!

            E os dois mendigos olharam para Eduardo que disse:

            - Quem vocês acham que nos deu essa comida que acabou de matar a nossa fome?

            - É claro que foi aquele cara.

            - E quem deu o dinheiro para aquele cara pra comprar a comida?

            - Isso é muito relativo Eduardo. Ele tem trabalho e simplesmente resolveu nos dar a comida.        

            - Não cara! Foi Deus que fez ele nos dar a comida! Deus tocou no coração dele.

            - Não! Eu não acredito que Deus faz isso. Ele não fala com ninguém cara. Nunca falou comigo. E foram anos. Nunca falou comigo. Se Ele existe verdadeiramente e se é esse Deus de bondade. Só aparece quando falam de coisas boas. E quando falam de coisas ruins, nem sequer falam Nele. Culpam aí um cara, o tal de diabo.

            Nivaldo meio triste voltou atrás:

            - Ao mesmo tempo eu acho que Deus existe. Só que Ele não gosta de mim. Ele nunca gostou de mim.

            - Eu não digo nada Nivaldo. Se eu hoje sou um mendigo, foi porque Deus quis assim.

            - Sei Lúcio! Acho que você está coberto de razão - relatou Nivaldo.

            O sol já começava descer no horizonte. Os três mendigos seguiam a margem do caminho da morte.

            Enquanto contemplavam as lindas fazendas de café. O vento assoprava as folhas dos cafezais que brilhavam com diamante nos últimos raios de sol e Eduardo relatou:

            - Gostaria de ser um fazendeiro pelo menos um dia em minha vida.

            - O que é isso Eduardo! Está querendo ser um milionário, um maldito Coronel, e se esquecer dos seus amigos mendigos?

            - Não falei com essa intenção. Eu só queria ser dono de uma dessas fazendas  pelo  menos um dia. Só isso Nivaldo. Nada mais...

            - Rá, rá, rá, rá... Então você quer ser um Coronel! Se sentir como um Coronel? O que é isso cara!

            E logo, como nunca esperou, o sol se foi, deixando apenas os raios coloridos como lembrança de um lindo dia...

            - Está vendo aquela casa lá na encosta da serra, Nivaldo?

            - Estou vendo Eduardo. E daí, o que tem aquela casa?

            - Aquela casa cara! Ela é linda. Vamos lá.

            - Se eu fosse vocês não iria...

            - Por que Lúcio?

            - Somos mendigos Eduardo. Nem podemos ao menos pensar em ir àquela casa.

            - Ah! Então só porque a vida nos deixou sem nada é que não podemos entrar naquela casa! Vocês se lembram que éramos   fortes e que trabalhávamos, nos pediam para entrar...

            - Sim! Contudo nunca fomos à sala aonde jantam os Coronéis e suas famílias. Nunca cara! Nunca...

            A linda casa agora estava na mira do mendigo Nivaldo. Que disse:

            - Vamos lá. Nós vamos lá... 

            - Está louco Nivaldo?

            - Não Eduardo! Eu estou bem. Vamos lá.

            E se tiver algum Coronel na sala, ele terá que ceder uma cadeira pra mim.

            - E se por acaso ele não ceder essa cadeira Nivaldo?

            -  O faremos em pedaços Eduardo!

            - Eu não vou entrar nessa encrenca cara! Basta o que o Delegado já fez comigo.

            - O que é isso cara! Está com medo! Por isso é que você se tornou num mendigo. Pois é um fraco.

            - Veja como fala cara! Não é assim Nivaldo.

            - O que seu fraco! Seu cego de um olho só! Apanhou na vida. Apanhou de um Delegado. Até de prostituta você deve ter apanhado...

            - O mendigo Lúcio olhou ternamente para o mendigo Nivaldo e relatou:

            - Sabe Nivaldo! Você está falando assim comigo porque sou um mendigo. Se eu fosse um Coronel, você jamais falaria assim.

            - Que nada cara! Vamos lá naquela casa. E se lá tiver um Coronel, você verá o que vou fazer...

            - Está querendo me convencer a ir lá ou tem mesmo essa coragem que fala?

            - Vamos lá você saberá...

            De modo que os três mendigos seguiram rumo à linda casa.

            - Vamos chamar pra ver se tem alguém lá?

            - Bico calado Eduardo.

            - Por que Nivaldo?

            - Vamos invadir a casa. Vamos preparados, pois não sabemos quem nos espera...

            - Parece não ter ninguém - relatou Lúcio.

             Nivaldo pulou a cerca e abriu a porteira para os dois amigos.

            - Cuidado! Pode ter cachorro!  -exclamou Eduardo.

            - Sim Eduardo, vamos ter cuidado - argumento Lúcio.

            Enquanto isso, na casa da fazenda...

            - Tatiane! Já foi acender a luz de fora?

            - Estou indo mamãe...

            Assim que Tatiane chegou ao grande alpendre da casa para acender o candeeiro...

            - Fique quieta boneca - ordenou o mendigo Eduardo imobilizando a linda Tatiane.

            - Mãe! Onde está Tatiane? Tatiane?

            A linda Lúcia veio ao encontro da sua irmã e acabou sendo imobilizada pelo seu xará, o mendigo Lúcio que lhe disse: 

            - Fique calma Lúcia. Eu não vou lhe fazer mal. Só os Coronéis é que fazem mal às pessoas. Nós mendigos jamais faríamos mal a alguém.

            Naquela altura Nivaldo já tinha invadido a casa e lá na cozinha ele agarrou a senhora Lídia Melo, que gritou:

            - Não seu desgraçado, não faça isso comigo.

            - Rá, rá, rá, Fique calma madame. Eu só quero provar um pouco de você. Deixe que eu mate a minha sede em seu corpinho bem tratado. Fique calma. Você vai gostar. Não vai ser ruim.

            Nivaldo se viu livre dos poucos pedaços de pano que vestia a sua nudez. E com brutalidade emotiva ele despiu a senhora Lídia Melo. Enquanto ela gritava:

            - Não me abandone meu Deus, não me deixe assim...

            E logo Lídia Melo estava nua. Nua nas mãos de Nivaldo, do mendigo Nivaldo, o mendigo do caminho da morte.

            - Está gostando madame. Eu guardei tudo esse amor para um alguém que nem mesmo sabia quem. Agora sou todo seu.

            Lídia  Melo se perdia de amor nos braços do mendigo Nivaldo e até dizia:

            - Me beije você é demais. Você é o homem que eu sempre desejei. O homem mais maravilhoso do mundo.

            - Sou apenas o mendigo Nivaldo madame. O mendigo que segue pela estrada da morte.

            Lídia Melo de olhos fechados ali sobre uma mesa, servia com o seu corpo aquele mendigo da forma que nunca tinha servido ninguém em toda a sua vida. E feliz dizia:

            - Eu vou morrer de amor, eu vou morrer.

            - Não morra madame. Eu te amo, não morra...

            E na ânsia Lídia Melo se desfalecia depois do amor nos braços do mendigo Nivaldo, deixando as suas últimas palavras.

            - Eu te amo mendigo. Eu te amo...

            - Não madame, não morra...

            Após as lindas declarações, Lídia Melo morreu. O mendigo Nivaldo desesperado gritava:

            - Você não podia ter morrido, não podia. Eu amei você! Você foi a única mulher que me amou de  verdade. Não, você não podia ter morrido.

            Nivaldo colocava os seus ouvidos sobre o busto de Lídia Melo e o seu desespero aumentava ao sentir que o coração dela estava parado.

            - Você não devia ter morrido, não devia...

            Nivaldo beijava o corpo de Lídia Melo já depois de morta e dizia:

            - Já que você morreu, eu também quero morrer...

            - O que foi Nivaldo! O que está acontecendo? Por que você está aí nu? Veja que loucura cara. Você está louco!  Não combinamos nada disso cara, você é louco.  - Não sei Eduardo. Ela era de verdade. Contudo morreu em meus braços  -argumentou Nivaldo chorando junto ao corpo de Lídia Melo.

            - Você matou a mulher cara. Agora estamos perdidos.

            - Ela morreu de amor Lúcio. Morreu em meus  braços.

            - Lá, lara, lá, lá...

            - Eduardo o que está fazendo aí?

            - Venha cá Lúcio. Venha ver que quarto lindo, que guarda roupa, equipado, vai vestir cara, têm muita roupa, que lindo.

            - Legal cara. Muito lindo...

            - Venham me soltar seus idiotas!

            Tatiane e Lúcia gritavam amarradas nas cadeiras na sala. De modo que Nivaldo foi até elas e disse:

            - Oi queridas! São vocês filhas daquela linda mulher?

            Nivaldo tirou as expressões de tristeza dos olhares das moças relatando:

            - Podem ficar tranqüilas queridas. Não vou deixar ninguém fazer mal a vocês.

            E seguindo em direção a uma delas perguntou:

            - Qual o seu nome?

            - Por quê quer saber o meu nome?

            - Quero chamá-la pelo seu nome. O meu é Nivaldo. Eu sou o mendigo Nivaldo. Sou o mendigo do caminho da morte.

            Tatiane então relatou:

            - Meu nome é Tatiane, esta é a minha irmã Lúcia, a minha mãe é Lídia Melo, que é a esposa do meu pai, o Coronel Carlos Melo. Ele está viajando.

            - A sua mãe morreu Tatiane... Ela morreu de amor.

            - Seu maldito, matou a minha mãe! E ainda diz que ela morreu de amor.

            - Não Tatiane. Ela morreu de amor sim. Morreu em meus braços.

            Depois que Nivaldo falou com as filhas de Lídia Melo. Voltou para o lugar que tinha deixado a sua admiradora que agora já estava morta sobre a mesa da sala e disse:

            - Eu vou dar um bom banho em você Madame. Você vai ficar mais linda do que já é.

            - Vai fazer amor com quem já morreu Nivaldo?

            - Não Eduardo. Eu só vou dar um banho nela...

            - Coitado! Ficou louco mesmo - argumentou Lúcio.

            - Você achou uma roupa legal Lúcio!

            - Você gostou Eduardo?

            - Muito bonita. Uma linda roupa...

            - Vamos agora fazer comida. Estou com muita fome.

             - Já deve ter comida pronta Lúcio.

            - Não importa. Eu quero mesmo é fazer a minha própria comida. Vamos fazer um banquete.

            Enquanto Lúcio e Eduardo faziam comida, Nivaldo se perdia no amor com a sua Lídia Melo.

            - É Eduardo. Vamos fazer os melhores pratos que o mundo já viu.

            - Eu não sei fazer lá esses pratos, só sei que eu vou comer muito. Disso eu tenho certeza. Vou comer muito...

            Nivaldo terminou de dar banho no corpo de Lídia Melo e a levou para a sala da grande casa e depois foi até onde estava as meninas que estavam aflitas e Tatiane gritava.

            - Tatiane? Qual era a roupa que a sua mãe mais gostava de se vestir?

            - Pra que você quer saber seu maldito?

            - Fique calma Tatiane. A sua irmã está tão calma, porque você não fica calma também?

            - Por que você não me mate?

            - Não vou te matar Tatiane. E nem vou deixar ninguém matar vocês. Não vou matar vocês. Vou continuar a ser mendigo. Vou ser mendigo pelo resto da minha vida.

            - Você é louco cara. Você só pode ser louco!

            - Não Tatiane! Eu não sou esse louco que você está se referindo. Os loucos são os Coronéis que deixam as pessoas se tornarem mendigos, deixam os pobres se tornarem assassinos para matarem as pessoas para eles. Que deixam as leis do lado e fazem as suas próprias leis. Esses é que são loucos. Não um pobre mendigo no caminho da morte. Caminho esse construído pelos próprios Coronéis malditos.

            - Vão embora da minha casa seus desgraçados?

            - Eu irei Tatiane, eu irei. Só que antes eu quero saber qual o vestido que ela mais gostava.     

            - É um vestido azul e branco - informou Lúcia meio triste.

            Nivaldo apanhou o vestido azul e branco e foi até Lídia e disse:

            - Eu vou te deixar ainda mais linda com o vestido que você sempre gostou de se vestir. Azul e branco.

            O mórbido corpo de Lídia Melo até parecia sorrir com tanto carinho que o mendigo Nivaldo tinha com ela. Nem mesmo o Coronel Carlos Melo tinha feito ela se sentir assim.

            - Azul e branco. Esse é o seu vestido preferido.

            Enquanto Nivaldo vestia a sua amada cantava uma canção:

            - Lara, lá, lá, rá, lá...

            E outra canção se estendia lá na cozinha:

            - Ei, ei, ei...

            - Lúcio! Venha ver cara. Essa vai ficar legal.

             - O que é isso cara!

            - Esse foi o prato que a minha mãe me ensinou! Veja como é gostoso!

            - Se acha que vou provar isso está enganando Eduardo!

            - Respeita o meu prato cara. Foi o que a minha mãe me ensinou.

            - E como chama?

            - Banana ao suco. O que eu disse mesmo?

            - Banana ao suco.

            - Ah! Esqueci-me do suco.

            - Que suco?

            - Suco de ovos.

            - Soco de ovos! Você deve estar louco. Enlouqueceu de vez.

            - Não Lúcio. Eu estou certo. São gemas de ovos que faltam para dar um gosto legal.

            Lúcio e Eduardo se perdiam nas suas idéias e alegrias. Pareciam voltar ao passado e reencontrar nas suas alegrias, que mesmo na pobreza eles tiveram. Até que os malditos Coronéis aportaram nos seus destinos e os fizeram mendigos no caminho da morte. Enquanto isso o mendigo Nivaldo viajava no estranho amor com Lídia Melo.

            - Tatiane! Eu já vesti a sua mãe.

            - O que está com tanta coisa com a minha mãe mesmo morta seu desgraçado. Seu assassino.

            - Não sou um assassino Tatiane! 

            - Quantas  vezes quer que eu repita Tatiane. Ela morreu de amor. Morreu de amor por mim Tatiane. Não acha que isso não é o bastante? Ou você acha que ninguém morre por amor?

            - Acho que não seu louco. Você matou a minha mãe. Você tem que morrer.

            - Sim Tatiane, sei que um dia eu vou morrer. No entanto, consciente de que nunca vou ter o privilégio que teve a sua mãe. Morrer de amor. Morrer fazendo amor. Nunca Tatiane! Isso é privilégio pra poucos.

            - Isso você não terá. Pois quando o meu pai te pegar vai te cortar aos pedaços. Você vai ver.

            - Seu pai Tatiane. O Coronel Carlos Melo. Seu pai é um Coronel muito burro Tatiane. Quer dizer!

Todos os Coronéis são extremamente burros. Veja só. Ele viajou e deixou vocês sozinhas. Dá pra notar quanta burrice nisso!

            - Não é sempre assim. Só esta vez que ficamos sozinhas.

            - Pra mim vocês sempre ficaram sozinhas. Ele pode ser um homem bom para vocês. Mas para mim ele não passa de um Coronel terrível, um Coronel desgraçado.

            Nivaldo deixou as moças e foi para a sala velar o corpo de Lídia Melo. A linda Lídia Melo, esposa do Coronel Carlos Melo.

            - Eu vou cuidar de você madame. Esta vai ser a sua última noite. E provavelmente será a minha. A minha última noite.  

            Depois de algum tempo o frio da noite invadia a casa, e na madrugada as nuvens frias se misturavam e a serração dava passagem a pequenos cubos de gelo em formas de gotas de água que banhavam os cafezais lá nas margens do caminho da morte.

            - Lúcio, ô Lúcio!

            - O que é cara. Fala!

            - Chama Nivaldo cara. Pra gente comer um pouco de torta.

            Assim Lúcio foi até a sala chamar Nivaldo...

            - O que está fazendo aí, ajoelhado Nivaldo?  A madame já morreu cara. Essa aí não vale mais nada. Ela já era...

            Nivaldo nem sequer respondeu ao amigo que meio triste voltou à cozinha dizendo:

            - Eduardo! Venha cá cara! Veja o estado de Nivaldo.

            Assim os dois foram ver Nivaldo, e assustado Eduardo falou:

            - Cara, que bobeira é essa cara!  Ela já morreu. Não adianta  orar por ela. Só Jesus Cristo ressuscitou. E alguns que antes Dele morreram. E daí pra cá cara. Só mesmo alguns dos discípulos de Jesus Cristo revestidos do Espírito Santo, fizeram tal coisa. Não vai ser você cara. Um mendigo, que vai dar a ela a vida de volta. Acorde cara...

            Mesmo assim com a chegada dos dois mendigos, Nivaldo não interrompeu a sua oração.

            - Vamos Eduardo. Ele ficou louco. Vamos cara.

            Lúcio e Eduardo voltaram pra a cozinha e continuaram com a festa de comida que fazia na intenção de realizarem um grande banquete.

            - É Lucio, o nosso amigo ficou mesmo doidão. Ficou abalado.

            - Não era pra menos Eduardo! Uma mulher morrer em seus braços!

            - É feio. Contudo, se fosse comigo, eu não iria ficar assim.

            - Eduardo, veja o que está falando cara. Imagina só, um corpo quente em um ato sublime,  no qual muitos de nós gostaríamos de estar e de repente nos ver abraçado com um cadáver. É ruim demais cara.

            - Você tem razão Eduardo. É duro mesmo...

            Argumentou Eduardo meio triste e olhando para um canto da cozinha e via ali os resíduos de fumaça que se acumulou ao longo dos anos.

            -  O que está olhando cara?

            - A fumaça cara! Veja como ela está acumulada. Até nos dá a impressão dos longos anos de felicidade. Imagina quantos banquetes já fizeram  aqui nessa cozinha. Enquanto nós, mendigando o pão por onde passamos.

            - Sei Lúcio. Aí está a diferença. Depois dizem que somos iguais.

            Nivaldo se levantou e foi até Tatiane e falou:

            - Tatiane! Eu gostaria de perguntar uma coisa a você?

            - O que deseja seu mendigo miserável?

            - Qual a roupa que o seu pai usa que alegrava a sua mãe?

            - Um terno azulado.

            - Obrigado Tatiane. Eu hoje me sinto como se eu fosse o seu pai. Hoje me sinto como se eu fosse um Coronel.

            - Vai seu louco. Suma daqui...

            Nivaldo foi até o quarto e vestiu o terno. Logo se apresentou na sala e como se fosse um passo de mágica ele dançava como se estivesse com Lídia Melo.

            - Eduardo! Venha ver Nivaldo. Ele está dançando perto da morta.

            - Ficou louco mesmo. Não acha Lúcio...

            Nivaldo parecia perdido no tempo. Parecia se enlouquecer de amor e felicidade. Sentia-se numa noite de glória. Uma noite de grande satisfação. Por ter uma linda mulher, morrido em seus braços.

            - Vamos Eduardo. Deixe que ele se desfaça da fantasia por si só.

            Na  verdade  parecia  que  Nivaldo  estava  dançando  com  a alma de Lídia Melo. Pois pelo seu gesto delicado de um eterno apaixonado, paixão essa mesmo no maldito caminho da morte até parecia o seu desejo de beijar o vento.

            - Rá rá rá... Eu gosto de você. Eu gosto de você.

            - Será que ele está dançando com a mulher que morreu Eduardo. Vamos ver se ela está na mesa mesmo!

            Os dois mendigos foram até a mesa ver se o corpo de Lídia Melo estava lá. Naquele momento Nivaldo falou:

            - Não faça barulho que ela está dormindo...

            - Pode fazer barulho Nivaldo. Ela está morta. Ela morreu...

            - Não! Ela não morreu. Ela está dormindo. Ela dorme um sono profundo.

            - Você está louco cara. Ela morreu - afirmou Eduardo.

            Nivaldo foi para perto dos mendigos e disse:

            - Poderia repetir o que disse Eduardo?

            - Sim Nivaldo. Ela está morta cara.

            E de um jeito estranho Nivaldo falou:

            - Gostaria que vocês se retirassem! Não quero mendigos perto dela.

            - Vê como fala com a gente cara. Nós somos seus amigos -  afirmou Lúcio.

            - Não! Vejam com quem falam - relatou Nivaldo. 

            - Você é um mendigo cara. Sim, você é o mendigo Nivaldo  - relatou Eduardo.

            - Eu fui o mendigo Nivaldo. Porém, agora eu sou um doutor.

            - Deixe que ele viva na ilusão Lúcio. Vamos pra cozinha.

            De modo que os mendigos foram para cozinha. E Nivaldo ficou falando com Lídia Melo:

            - Agora eu estou contente. Sou o doutor Nivaldo. O doutor do caminho da morte.

            De maneira que o mendigo Nivaldo agora achava que era o doutor Nivaldo. E lá na cozinha, Lucio e Eduardo, já tinham terminado de fazer a comida e estava agora preparando o tão sonhado banquete. Enquanto que Nivaldo e a sua Lídia Melo saiam da sala. Pois, o mendigo Nivaldo, agora doutor Nivaldo a levava em seus braços para o terreiro da casa. A lua descia no horizonte. Contudo, a claridade que tinha dava para Nivaldo cavar uma sepultura para a sua amada. O corpo de Lídia Melo jogado no chão ali perto, esperava pacientemente Nivaldo abrir a sepultura. E num dado momento ele disse:

            -  Não fique triste meu amor. Colocarei você aqui na sua terra. Para que você possa ficar pertinho das suas filhas. E quanto a mim, vou seguir pelo asfalto do caminho da morte. Contudo, nunca vou me esquecer de você.

            - Veja Lúcio. Nivaldo está lá cara, cavando a sepultura! Ele ficou louco cara.

            - É! Ficou mesmo.    

            - Então vamos ao banquete. Já que não temos Nivaldo mais. Vamos convidar as duas princesas para o nosso banquete. Vamos...

            De modo que naquela grande sala. Lúcio e Eduardo puseram uma farta mesa, com muitos pratos de variados sabores. Lá na mesa daquela linda casa na beira da estrada da morte.

             - É cara! Já está tudo pronto...

            - Vamos fazer mais uma tentativa! Será que Nivaldo virá dessa vez. Assim ele pode participar do nosso banquete.

            De modo que quando eles chegaram no quintal só encontraram ali a sepultura de Lídia Melo. Nivaldo já tinha ido embora. Nem sequer se despediu deles. Um olhou para o outro e cobertos de tristeza, e ao mesmo tempo felizes. Pois tinham um banquete e duas lindas garotas para lhes fazer companhia. Bem melhor do que a companhia de um mendigo. Um mendigo que disse que era doutor. Lúcio abraçou Eduardo e falou:

            - Só sobramos nós dois.  

            A barra do dia começava aparecer. Já com a mesa posta. Lúcio e Eduardo foram até as garotas e soltando-as Eduardo falou:

            - Vamos Tatiane, vamos para o nosso banquete! Nos dê essa alegria e a satisfação de podermos comer na sala de um Coronel.  Ainda por tudo com a filha do Coronel.

            Tatiane, no entanto, parecia se sentir melhor a se ver livre das cordas em seus punhos, e disse para a sua irmã:

            - Vamos com eles Lúcia. Vamos...

            E quando todos estavam à mesa Eduardo falou:

            - Gostaria de pedir a Tatiane para agradecer a comida a Deus. Para que ela nos faça bem. Pois nunca participei de um banquete. E também nunca pensei que um dia junto com um amigo mendigo fossemos preparar um banquete.  Agradeça Tatiane...

            Tatiane então relatou:

            - Tudo bem! Fechem os seus olhos. Para que possamos agradecer a comida.

            E naquele instante de fé e emoção. Todos de olhos fechados Tatiane começou a agradecer a Deus pela comida e ao mesmo tempo apanhou duas facas, deu uma para Lúcia e ficou com a outra. E ao mesmo tempo gritaram:

            - Morte para vocês seus desgraçados. Morte.

            E partiram para cima dos mendigos. No entanto foram imobilizadas por eles e Eduardo falou:

            - Maldita é a mulher. Maldita. Maldita essa criação de Deus. Burras, idiotas. Demos a elas a oportunidade de participar do nosso banquete. Aí, na hora de agradecer a Deus pela comida. Elas escolheram o momento para nos matar.

            Triste com o que aconteceu Lúcio olhou para Eduardo e disse: 

            - Eu já esperava por isso. Não se deve confiar em uma mulher. Nada! Elas não são dignas de confiança. Todas as mulheres não são dignas da nossa confiança. Elas são traidoras, enganadoras, elas são o próprio engano. Lembro-me das histórias que o meu pai me contava. Que a minha mãe me contava. Por onde eu passei, e todos os casos que me contaram, sempre a mulher estava lá do lado da traição. Elas causam a morte, as guerras, rá rá, rá, traste infernal. E nós viemos de uma cara. Nascemos de uma. Talvez seja por isso que somos mendigos. Somos malditos, somos filhos da maldição. Somos filhos de uma mulher cara! Somos frutos de uma maldita.

            Eduardo, no entanto disse:

            - Não concordo totalmente com sua idéia Lúcio.  A minha mãe não é maldita.

            De maneira que os mendigos discutiam ali, enquanto amarravam novamente as duas filhas do Coronel Carlos Melo. Naquele instante alguém gritou lá fora quebrando assim, todo aquele clima horrível. E como tudo tem fim. Aqueles dois mendigos correram para porta e pra ver quem chegava e acabaram encontrando com a morte. Porém, antes de levar o tiro o mendigo Eduardo falou:

            - Lúcio! O Coronel chegou Lúcio. É o Coronel cara! Ele chegou. O que vamos fazer Lúcio?

            Antes mesmo de Lúcio dar a sua opinião, o sangue de Eduardo jorrava. E o capanga do Coronel Carlos Melo atirou também no mendigo Lúcio. Que enquanto morria respondia a pergunta do Coronel Carlos Melo.

             - Quem são vocês? Hem! Quem mandou vocês aqui?

            - Ninguém Coronel. Foi apenas a beleza da sua casa. Contudo eu e meu amigo estamos morrendo inocentes. Não fizemos mal a ninguém. Apenas queríamos comer um banquete.

            E após aquelas palavras Lúcio morreu.

 

FIM

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