sábado, 29 de abril de 2023

A Dívida João Rodrigues

 A DÍVIDA

 

JOÃO RODRIGUES

 

            Tudo aconteceu quando Joel morreu.

            - O senhor pode esperar aí que vou ver se o seu nome está escrito no livro.

            - Tudo bem senhor.

            Assim, enquanto o funcionário de Deus procurava o nome de Joel no livro que fica na portaria do céu. Esse ficou à espera, assentado no alpendre da casa onde fica a portaria do céu. E de lá dava para ver parte do paraíso.

            - Como é lindo o paraíso! - exclamou Joel com grande satisfação.

            Como podemos imaginar o quão grande é o livro da portaria do céu...

            - Hein amigo! Ainda não encontrou o meu nome?

            - Estou procurando amigo!

            - Eu tenho certeza de que vai encontrá-lo. Pois sou um bom homem, sempre fui um bom homem.

            Joel estava aflito para poder adentrar naquele lugar maravilhoso que era o paraíso. Só restava o homem encontrar o seu nome no tal livro misterioso...

            - Ainda não encontrou?

            Para a alegria e tristeza de Joel o homem finalmente relatou:

            - Está aqui o seu nome.

            Joel deu um pulo de alegria e em seguida disse:

            - Te falei. Eu sou um homem bom. Posso entrar?

            - Não. Não pode entrar. O senhor tem aqui uma pendência.

            - Pendência! Que tipo de pendência?

            - Está devendo quatrocentos cruzeiros a uma pessoa muito querida aqui no céu.

            - Seria Zezinho. O meu amigo Zezinho?

            - Isso mesmo.

            - Mas só isso que tem de pendência?

            - Até agora é. Tem mais anjos lá pra terra. Caso o senhor ir pagar a dívida e voltar antes deles. Tudo bem. O senhor pode entrar no paraíso.

            Joel ouviu o homem falar e dando uma última olhada para o paraíso relatou:

            - Como é lindo aquele lugar. Eu vou lá pagar o Zezinho. E o senhor pode ter certeza de que logo estarei aqui.

            - Está certo amigo. Desejo boa sorte!

            Agora Joel estava de volta a terra. Só que desta vez não para morar. E sim para quitar a maldita dívida que lhe impediu de entrar no paraíso. De modo que na sua longa viagem de volta ele fazia os seus planos...

             - Posso vender o violão, a brasília velha e meu revólver. Acho que dá pra pagar o Zezinho e ainda sobrar alguma coisa para Júlia. Coitada! Como será que ela está se virando depois da minha morte...

    E depois de algum tempo Joel chegou em casa. Mas para aumentar ainda mais o seu pesadelo, notou que tudo ali estava diferente. As paredes da sua casa já tinham cores diferentes. Tudo estava mudado em sua rua. As pessoas que andavam ali não eram pessoas do seu tempo. De maneira que ele resolveu tocar a campainha. Aumentou o seu desespero quando percebeu pela primeira vez que não era dono de corpo nenhum. Pois assustado ao ver que quando foi tocar a campainha o seu dedo entrou pelo muro. Contudo ele ao mesmo tempo se sentiu importante que passou pelo portão sem ser aberto. Até falou:

            - Agora eu estou bonito na fita. Nem mesmo preciso abrir portas.

            De modo que Joel entrou no quintal da sua casa e com a mente conturbada procurava se encontrar mas não estava nada bem. Pois pra todo lado que olhava só encontrava coisas novas. Não se via nada que lhe fizesse feliz. Nada era como antes da sua morte.

            - Que diabos. Tudo está diferente! Onde será que se meteu a Júlia!

            E Joel procurava encontrar a sua mulher. Não estava no terreiro, nem na sala, muito menos na cozinha. Até que por fim ele chegou ao quarto e ali estava a sua amada deitada na cama com um cigarro entre os dedos. Parecia estar recuperando as suas forças depois de algo que lhe fez feliz. Pois o seu semblante era de alegria e ao mesmo tempo o seu olhar a conduzia ao passado que lhe dera muita satisfação. E para completar a tristeza de Joel ela falou com alguém que estava dividindo a cama consigo:

            - Onde será que está Joel a essa hora!

            Quando Joel olhou pro lado, viu ali o seu amigo Zezinho ocupando o seu lugar naquela cama que por muitos anos ele foi feliz. E para aumentar ainda mais o seu sofrimento Zezinho falou:

            - É, será que ele entrou no céu Júlia?

            - Não sei amor. O que você acha?

            - Acho que não. Dizem que ninguém entra lá devendo alguém. E ele me devia quatrocentos cruzeiros.

            - Pois é. Eu até que já tinha perdoado. Mas não falei com ele. Não esperava a sua morte tão repentina como foi.

            Júlia conversava com Zezinho e Joel ouvia a conversa apreensivo.

            - Como ele era legal. Todo esse tempo que vivíamos juntos. Sabe Júlia, eu sinto a falta dele. Apesar de depois da sua morte tudo ficou mais fácil pra nós. Lembro aquele dia lá no sítio. Quase ele pegou agente lá nas laranjeiras.

            - Como ia me esquecer amor. Sei que me casei com ele, mas quem verdadeiramente eu sempre amei foi você.

            Zezinho se sentindo confortado com a falta de Joel abraçou Júlia e disse:

            - Nunca desejei a morte dele. Oportunidade eu tive de dar cabo em sua vida. Contudo não fiz, porque nunca foi do meu feitio acabar com a vida de alguém. Não gosto nem mesmo de matar um animal, ainda mais um homem. Mas não vou dizer que se ele descobrisse o nosso amor e tivesse que nos enfrentar. Ai eu teria que enfrentá-lo pra defender você.

             - Você teria coragem de acabar com ele Zezinho?

            - Por você eu acabaria com o mundo meu amor.

            Júlia abraçou Zezinho e disse:

            - Sempre fui sua. Mesmo com ele do meu lado eu sempre fui sua.

            Joel chorava com muita dor e arrependimento de ter ficado devendo aqueles malditos quatrocentos cruzeiros. Pois se soubesse que iria descobrir o que Júlia fazia consigo. Ele teria dado tudo que possuía pra não ficar devendo nada ao seu falso amigo Zezinho. Maldita hora que ele foi fazer aquele negócio com Zezinho. Pois para ele Júlia seria comparada com o verdadeiro amor. Joel jamais imaginou que Júlia amasse o seu amigo. Sabia que eles eram amigos. Mas nunca pensou que fossem amantes.

            - Vida desgraçada que vivi - reclamava Joel tentando apanhar a arma numa gaveta do armário e matar os dois. Mesmo sabendo que assassino não entrava no paraíso, mas a dor era tão grande que lhe fazia esquecer de quão lindo era o paraíso que ele o viu ao longe.

            - Malditos, malditos.

            Gritava aflito o pobre Joel sem condições físicas de apanhar a arma pra solucionar a seu ver com aquela farsa que foi a sua vida com Júlia e o seu maldito amigo. Notando assim que a sua condição não dava pra competir com aquele casal maldito, Joel se lembrou de uma velha macumbeira que existia num canto de rua e que quem sabe seria ela a pessoa que pudesse lhe ajudar. De modo que foi pra lá. Levando consigo o ar de tristeza e desespero.

            - Será que ela ainda vive aqui! - exclamava o pobre Joel adentrando a casa da macumbeira.

             - O que está fazendo ai Joel?

            - A senhora está me vendo?

            - Eu vivo dos mortos Joel. Ficou devendo quatrocentos cruzeiros a Zezinho, não foi?

             - Sim. Devendo àquele maldito.

            Não fique triste Joel. Viu como é lindo o paraíso?

            - Como sabe do paraíso?      

            - Muitos já me falaram dele.

            - Não tinha pensado nisso.

            - Meu nome é Normélia, Joel. O que verdadeiramente você deseja?

            - Preciso pagar Zezinho. Nem mesmo sei se quero pagar ou matar aquele infernal com aquela vagabunda. Desgraçados, me enganaram direitinho.

            - Vem me dizer que você não sabia que Zezinho e Júlia te enganavam!

            - Sou muito bom pra pensar em tanta sujeira Senhora. Mas esse não é o caso. Seria o maior troco é eu entrar no paraíso. Ai sim, eu seria o vitorioso. Melhor que ir pro inferno com os dois se eu os matar.

            - Continuo sem entender o que você veio fazer aqui.

            - Quero ajuda. O que mais eu desejaria de uma pessoa como a Senhora!

            - Que tipo de ajuda?

            - Quero pagar o maldito pra que eu possa voltar pro céu. Pois é a única pendência que tenho.

             Por um tempo a macumbeira ficou em silêncio e logo em seguida disse:

            - A única maneira que vejo é lhe dando um corpo pra você poder trabalhar e pagar o seu amigo. Ou melhor, o seu sei lá o quê.

            - Eu mereço senhora. Eu mereço.

            Joel se julgava culpado por tudo que lhe aconteceu. Na verdade é isso que acontece com os que têm bom coração. São puros e não conseguem ver as coisas erradas. Pois só vivem pensando no bem não tendo assim o espaço pro mal em seus pensamentos.

            - Resolva Joel. Eu tenho mais o que fazer.

            - E o que vai me custar?

            - Você terá que trabalhar dois anos pra mim.

            - Depois disso o que acontecerá comigo?

            - Você estará livre de mim. Só que você terá que morrer novamente. Pois lá no paraíso não entra o suicida.

            Joel coberto de ódio e vontade de sumir da terra de uma vez por todas. Pois achava que era feliz com a sua querida Júlia e que precisou morrer devendo pro próprio amante dela pra descobrir que tudo que viveu não passou de uma mera fantasia e enganação. E mesmo sem pensar pegou na mão da macumbeira e acabou acordando do grande pesadelo no corpo de um travesti no momento que o médico ia fazer a autópsia lá no necrotério da cidade. Mas como se sabe que quando tudo está errado, nada que se faz dá certo. Pois para aumentar o desespero de Joel que quando se viu no corpo do travesti ele pegava as sua nádegas e tentava arrancá-las a força gritando:

            - Me tira daqui, me tira daqui...

            Mas já estava feito. Não tinha como voltar atrás.

            O que foi feito estava feito. O pior é que quando a notícia correu que o travesti ressuscitou, grande era o número de homens da alta sociedade que foi ao seu encontro. E, além disso, Joel pôde ver o valor que tinha aquele travesti para aqueles ricos senhores que o procurava. Agora tinha o seu novo nome. Joelma. Até parecia que a macumbeira sabia que o travesti Joelma tinha morrido de overdose. Ou seria muita coincidência.

            - Agora Joel virou Joelma. Mais uma pessoa trabalhando para mim - relatava a velha macumbeira no aguardo da sua recompensa.

            Joelma nessas alturas estava vivendo o seu novo momento e tentando entender o por que dos seus novos pensamentos. Até mesmo os seus bofes estavam apreensivos com o seu novo comportamento. Mas procuravam entender, pois ela tinha voltado do outro mundo. Que para certos bofes teria ocorrido um grande milagre. Até as sua ilusões cresceram e com isso a notícia fazia com que outros bofes procuravam por Joelma e lhe enchia de presentes e dinheiro que não foi muito difícil de Joel pagar o Zezinho. Só que quem foi fazer o pagamento foi a Senhora Normélia. A famosa macumbeira que agora estava melhorando de situação financeira. Pois tinha o grande travesti Joelma a seu serviço. De modo que o tempo passou e logo decorreram os dois anos do compromisso firmado. Joel que agora era Joelma estava livre do compromisso com a Senhora Normélia. Agora estava pronto pra morrer. Já havia pago os malditos quatrocentos cruzeiros ao seu amigo Zezinho. Mas lembrava do que disse a macumbeira.

             - Você terá que morrer novamente. Suicida não entra no paraíso.

            Joel estava ciente e encurralado ali naquele corpo de prostituição. É como se diz que está entre a cruz e a espada. Contudo não era sua culpa estar no corpo do travesti. Portanto nada devia.

            O que restava agora era morrer. Procurar um jeito de morrer. De modo que onde ele via uma confusão logo estava lá tentando resolver. Pois quem sabe assim alguém o mataria. E logo a sua fama correu pela cidade. E do seu nome de Joelma o povo começou a chamá-lo de veado milagroso. O veado do milagre. Pois onde ele passava a paz reinava. Com isso a tal morte tão desejada por ele estava cada vez mais distante. De maneira que ele começou andar pelas ruas sem mesmo prestar atenção por onde andava, até que por fim quase foi atropelado por um carro de um rico cineasta que lhe disse:

            - Está querendo morrer cara?

             - Sim moço, essa é a minha vontade.

            De modo que o cineasta o convidou pra filmar uma história e que nela ele morreria, mas depois do grande sucesso que alcançou, nem sequer quis saber do paraíso.

 

  FIM           

Nenhum comentário:

Postar um comentário